Dissipando
a perplexidade
ir.
Joaquim Daniel Maria de Sant’Ana, FBMV
Aproximamo-nos do 1º aniversário de descobrimento
das correspondências trocadas entre os bispos resistentes da FSSPX, que então
eram 3, e a direção desta, encabeçada pelo bispo e superior geral D. Bernard
Fellay, descobrimento que desencadeou, em maior escala, o processo de
resistência à mudança de orientação na FSSPX. Segundo todas as perspectivas
humanas, mas também segundo a maneira divina habitual de proceder frente
à correspondência ou não à graça, a FSSPX nunca mais será a mesma, pois o
liberalismo é um veneno muito sutil que, uma vez inoculado, mostra-se rebelde a
tratamentos mitigados. Tendo entrado no corpo de uma sociedade, sua anulação
exige diagnóstico imediato claro e insofismável, com medidas práticas
consequentes e proporcionais ao contágio. Ora, isto só pode ser efetuado por
uma autoridade que zela, com toda a clarividência e firmeza de vontade, pelo
bem-comum da sociedade. Mas que fazer quando a própria autoridade é a mais
atingida pelo dito veneno que entenebrece a mente e perverte a vontade?[i]
Ocorre hoje no mundo da Tradição
algo de semelhante ao que ocorreu nos anos do pós-Concílio: sente-se o mal, mas
a maioria recusa-se a encará-lo como tal. Motivos alegados não faltam, como o
respeito à autoridade, o desejo de “normalidade”, temores diversos, etc.
Quem sente o mal sem conhecê-lo bem nas suas causas
e efeitos, fica perplexo. E o perplexo não age em proporção da gravidade do
mal, ou simplesmente não age. Esta inércia torna-se de grande importância para
o progresso do mal que tende a destruir ou desnaturar a sociedade onde ele se
instalou.
Não há como negar, o liberalismo já faz parte do
modo de agir das autoridades da FSSPX. A revelação dos procedimentos discretos
do GREC mostrou-nos que já nos anos 90 o propósito acordista tomava
corpo num grupo reduzido, mas poderoso e influente. Durante uma década e meia
este propósito foi amadurecendo e se fazendo sentir de modo cuidadosamente
calculado, entre padres e fiéis. Pouco a pouco, os contatos com a Roma
conciliar foram se tornando mais frequentes, gerando uma espécie de “estado de
negociação”, que é a miséria do movimento católico tradicional, pois ele
obnubila nas mentes católicas a amplidão, a intensidade e as exigências do
estado de necessidade, tão real, mas também tão incômodo. Sem dúvida, não é
fácil encarar as autoridades eclesiásticas como elas atualmente são: o Bom Deus
se serve delas, mas elas não O servem. Portanto, de nossa parte, reconhecimento
e resistência, duas atitudes que, frente à autoridade, só deveriam ocorrer
raramente, em situações de exceção. Mas o Vaticano II e seu espírito
institucionalizaram a apostasia silenciosa, forçando-nos a tornar habitual esta
atitude difícil, delicada. É a nossa Cruz.
Mas quando não se quer carregar a Cruz, troca-se a
resistência pelo compromisso, sacrificando-se assim a coerência nos princípios
em nome de uma unidade utópica.
Alguns momentos nesta triste trajetória[ii]:
2007: a FSSPX pede o reconhecimento da Missa de
sempre. Roma responde com um decreto declarando-a não ab-rogada… mas restringe
sua aplicação, além de igualá-la e humilhá-la frente ao rito ilícito de Paulo
VI. E a FSSPX? Aceitou e agradeceu, e muitos com ela, entrando assim num falso
caminho.
2009: a FSSPX pede a retirada do decreto das
excomunhões aos bispos. Roma somente levanta as excomunhões, considerando-as
assim válidas. A FSSPX mais uma vez aceitou e agradeceu, e muitos com ela,
ainda que considerando que estas excomunhões nunca foram válidas. Cada um com a
sua verdade…
2010: Vieram então as discussões doutrinais, cuja
duração e segredo não eram de natureza a tranquilizar os fiéis. Até hoje não
sabemos grande coisa delas (segredo maior que o do conclave!); é bem possível
que a retidão dos defensores da boa doutrina tenha influído no seu resultado
negativo, reconhecido por ambos os lados. Nenhuma mudança: abismo
intransponível entre a firmeza na fé e a contumácia no erro.
Mas as coisas não iam assim do lado da Direção. O
movimento desencadeado por esta não deveria ser freado. Anunciou-se então
a iminência de uma normalização canônica, mas tendo-se o cuidado de precedê-lo
de um preâmbulo doutrinal que expressasse “uma compreensão comum da fé”[iii]
Quase um ano depois de enviado, temo-lo diante de
nós. Ele é o testemunho de uma vontade de capitulação prática no combate da fé
mediante uma profissão explícita de ambiguidade. A ambiguidade é o meio
predileto para fazer-se um acordo entre o que é católico e o que não é
católico. O próprio D. Bernard Fellay admitiu a ambiguidade, com a sua história
pouco edificante de óculos escuros ou cor-de-rosa. A direção de Menzingen
estava munida de vistosas armações com grossas lentes cor-de-rosa, mas suas
lentes e armações foram quebradas pelo próprio Bento XVI, que com três golpes
deitou tudo por terra. No seu modernismo, o papa então reinante foi mais
correto que Menzingen no seu tradicionalismo cor-de-rosa: necessário aceitar o
Concílio, o magistério deste, a missa de Paulo VI. É preciso ser claro!
A análise da referida declaração doutrinal, junto à
consideração dos fatos aqui brevemente resumidos, é mais que bastante para
concluir que estamos diante de um processo de infiltração, intoxicação, com
consequente destruição interna, ainda que conservando certas aparências. A
infiltração busca se instalar especialmente nos postos de mando, a intoxicação
se faz acostumando à frequentação perigosa que fomenta a ambiguidade e a
contradição nos ambientes. O objetivo principal no caso presente, é a submissão
efetiva do maior número possível de católicos da Tradição às autoridades
romanas, sobretudo padres e bispos. Mas se esta submissão não se oficializa,
pelo menos deve-se manter o controle do carro-chefe, a FSSPX, cujas autoridades
devem manter intactos seus propósitos, não deixando nunca de moldar à sua
imagem a mentalidade de seu clero e fiéis.[iv]
Apressamo-nos em declarar que não dispomos de
nenhuma prova conclusiva mostrando que a direção da FSSPX seja composta de
iniciados, maçons, marranos, et caterva. Mas os fatos e documentos
demonstram que eles agem de um modo impressionantemente semelhante.
São Bernardo constatava, há 9 séculos, que os judeus
praticavam a usura (nihil novum sub sole)… Mas ele também dizia
que os cristãos, quando praticavam a mesma, tornavam-se piores que os judeus.
Fazendo a devida aplicação ao caso presente, é o mínimo que podemos afirmar:
agem como inimigos infiltrados, movendo-se na ambiguidade e contradição, mas
com um objetivo final inalterável, que não é o objetivo para o qual a sociedade
que regem foi instituída.
E é isto que legitima uma resistência e deve afastar
toda perplexidade. Os perplexos poderiam se interrogar sobre como homens
piedosos e que falam tão bem das coisas de Deus poderiam se comportar desse
modo; eles os ouvem sem cessar dizer que eles trabalham para o bem da Tradição…
Outros poderiam opinar que eles talvez nem percebam seus erros, podendo tudo
isto ser considerado como uma ilusão bem-intencionada da parte deles.
Mas são os fatos que contam: o enfraquecimento da
doutrina, o prejuízo das almas, a instabilidade da sociedade. Tudo isto em nexo
causal com a mudança de orientação na direção, a qual, à medida que se torna
mais explícita, torna mais grave a crise.[v]
Esclarecer é necessário. Não se pode esperar uma
mudança significativa nessas condições. Esperar, inativo, equivale a ser
prejudicado no que há de mais fundamental na vida da alma: a fé teologal, que a
tudo deve inspirar. Para continuar a viver da fé, o justo deve denunciar os que
a mercadeiam.
[i] Baste-nos aqui citar o já célebre texto da resposta do
Conselho Geral aos bispos: “Pelo bem-comum da Fraternidade nós preferiríamos de
longe a situação atual de status quo intermediário, mas
evidentemente Roma não tolera mais.”
[ii] Ver a análise “La Estratégia de Satanás”, em http://nonpossumus-vcr.blogspot.com.br/2013/01/la-estrategia-de-satanas.html
[iii] Pe. Pfluger, em entrevista ao Kirchliche
Umschau. Renunciando a ter uma fé comum, o que implicaria
necessariamente a conversão da Roma conciliar, o que se busca agora é uma
“compreensão”, a ser instrumentalizada para os fins práticos de um acordo. É
querer conviver com o Modernismo, nada mais.
[iv] Os frutos desta ação já se fazem amargamente
sentir. Ver o artigo “os fiéis têm o direito de saber”, em:http://www.nossasenhoradasalegrias.com.br/search/label/OS%20FI%C3%89IS%20TEM%20O%20DIREITO%20DE%20SABER
[v] E que não venham nos dizer, com hipocrisia ou cegueira de
espírito, que os que denunciam e revelam o oculto das ações subversivas são os
causadores da crise. Seriam causadores se o que revelam não fosse verdade. Mas
as correspondências entre os bispos e a direção da FSSPX, as condições do
último Capítulo, e o preâmbulo doutrinal são inquestionavelmente documentos
verídicos. A revelação destes documentos aumenta o conflito? Sim, porque
provoca uma reação salutar contra a ação oculta. Não amamos a guerra, mas
odiamos ser conduzidos, como cegos , para o buraco.